domingo, 16 de setembro de 2012

1984

O que escrever sobre um livro tão falado e recomendado, principalmente depois da invasão dos realities shows? Lembro-me que, quando lançaram a primeira edição do programa Big Brother Brasil (em 2002),  a obra foi exaustivamente discutida nos meios acadêmicos e de comunicação por ter sido considerado uma antevisão do futuro: um mundo onde todos são vigiados por câmeras.

Lançado em 1949, 1984 retrata de forma bem humorada e irônica a vida de Winston Smith, um homem com uma vida aparentemente insignificante, prisioneiro de uma sociedade totalitária e repressiva, dominada pelo “Partido”, que tinha como slogans três frases que resumem a opressão: “Guerra é paz, Liberdade é escravidão e Ignorância é força”.

O Estado controlava todos os passos através de patrulha policial e da “teletela”, que funcionava como câmera de vigilância e televisão, para transmitir a programação oficial do governo.  E, em todas as partes, havia um pôster com um rosto enorme, com os olhos que pareciam acompanhar sempre que alguém se movesse, e com a frase: “O Grande Irmão (no original, Big Brother) está de olho em você”. Por hábito e instinto, acreditava-se que todo som emitido era ouvido e, se a escuridão não fosse completa, todo movimento examinado meticulosamente.

E esse domínio absoluto gerou uma nação de fanáticos sincronizados, todos pensando os mesmos pensamentos e bradando os mesmos slogans. Um lugar onde não se tinha amigos, o casamento só era necessário para gerar filhos que servissem ao Partido e viver um amor verdadeiro era impensável. E todo aquele que discordasse das ideias e ações do governo desaparecia, sem julgamento ou registro de prisão. Seu nome era removido dos arquivos e sua existência negada.

Funcionário do Ministério da Verdade – responsável pelas informações -, Winston é o encarregado de eternizar a propaganda do regime através da falsificação de documentos, jornais e livros a fim de que o governo sempre estivesse correto no que fazia. Se o Partido se aliasse a um país que era seu inimigo no passado, apagava-se e alterava todos os registros anteriores.

Com as constantes alterações do passado e as coibições, Winston passa a ansiar por verdade e liberdade e começa uma revolta romântica e anárquica contra o sistema – escrevendo em um diário, apaixonado-se por sua colega de trabalho e se envolvendo com uma organização revolucionária secreta.

O livro, até esse ponto, é dinâmico e instigante. Ficava torcendo para que o personagem conseguisse rebelar o país e que seus habitantes saíssem da impassibilidade. Mas o autor tornou-se repetitivo e os atos dos personagens muito esmiuçados. E o interesse foi minguando. Graças ao incentivo do meu namorado (que tinha lido anteriormente e disse que, após a parte maçante, o estímulo voltaria), persisti e tornei a me impressionar com a escrita e a habilidade que George Orwell teve de retratar tão perfeitamente uma sociedade dominada pelo governo e sua a crescente invasão sobre os direitos do indivíduo.

Quando foi lançado, muitos interpretaram 1984 como uma crítica devastadora aos governos nazistas, fascistas e comunistas que ainda persistiam na Europa e Ásia. Sessenta anos depois, o livro ainda se mostra atual e nos impõe uma poderosa reflexão sobre a busca incansável pelo poder e os excessos comentidos para alcançá-lo.

O poder pelo poder, a procura pelo domínio incontestável, a subserviência e a apatia dos indivíduos soam como alerta para a nossa sociedade - cada vez mais refém de condomínios fechados e câmeras -, que almeja a segurança em detrimento da individualidade e liberdade.  

E essa leitura me fez lembrar uma das grandes composições de Chico Buarque, “Apesar de você”:

"Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão...".

Espero que esses rabiscos sobre 1984 sejam um retorno permanente, e que eu não me perca e não abafe o interesse por esse espaço tão libertador e aconchegante. Até.

Ficha técnica:
1984
Autor: George Orwell
Editora Companhia das Letras
Ano: 2009 - 7ª reimpressão (1ª edição em 1949)

sexta-feira, 30 de março de 2012

Trem noturno para Lisboa

Para mim, livro bom é aquele que me faz vaguear, sem rumo certo, ao acaso, sem fins específicos, percorrendo ideias e emoções, permitindo-me ser transportada para outros lugares, vivendo novas descobertas e redescobrindo a beleza do existir.

Trem noturno para Lisboa, de Pascal Mercier (pseudônimo de Peter Bieri, professor de filosofia de Berlim), conseguiu levar-me para caminhos inquietos, cercados por experiências de amizade, amor, solidão, morte, lealdade e mudanças. No vagão, reavaliei meus conceitos sobre o ser e, principalmente, o estar.

É muito confortável passar a vida como se estivesse num quadro pintado a óleo, constante, perene, repousando tranquilamente numa imagem construída por si e pelos outros. Sem oferecer imprevistos e contrariedades. E assim era a vida de Raimund Gregorius, um homem erudito, professor de latim e grego na cidade de Berna (Suíça), preso as suas próprias limitações. Era até cruzar com uma mulher com a intenção de pular da ponte que ele percorria diariamente e se encantar com sua voz macia com sotaque português, língua que até então ele desconhecia (“uma melodia que ele simplesmente adoraria ter escutado durante todo o resto da vida”). Horas depois, no meio de uma aula, Gregorius vai embora e, aos 57 anos, tem a sensação de finalmente estar prestes a tomar as rédeas de sua própria vida.

Perambulando pela cidade, ele entra numa livraria e se depara com um livro sobre o escritor português Amadeu Inácio de Almeida Prado, o ourives da palavra. O dono da livraria se oferece para ler um trecho e as palavras, de sonoridade aveludada, provocam em Gregorius um efeito atordoante, pois parecia que tinham sido escritas só para ele, principalmente naquela manhã em que tudo havia mudado. Ele compra o livro, faz as malas e pega o trem noturno para Lisboa, deixando para trás sua vida organizada e uma parte dele (“Sentiu-se à deriva num bloco de gelo que se desprendera da terra firme por um terremoto e vagasse no mar aberto e gelado”). E foi encontrar um mundo do qual ele nada sabia até então.

Em Lisboa, Gregorius começa uma jornada investigativa para tentar compreender a vida do misterioso escritor português Amadeu de Prado, que morrerá 30 anos antes, buscando pessoas que conviveram com ele, lugares e fragmentos.  

Homem de temperamento excessivo, Amadeu tornou-se médico para realizar o desejo do pai doente, que se suicidou por não aguentar as dores na coluna. Dono de um carisma hipnotizante, era querido e respeitado por todos até salvar a vida de um odiado oficial da polícia secreta da ditadura de Salazar. Depois disso, as pessoas passaram a evitá-lo e isso partiu seu coração. Para se redimir, passou a trabalhar clandestinamente para a resistência antifascista.

Paralelamente, Amadeu era também um escritor de suas próprias angústias, um “ourives das palavras cuja paixão mais profunda consistira em arranca as experiências silenciosas da vida humana de sua mudez”.

A peregrinação de Gregorius mostra o quão penosa é a busca pela compreensão do outro e de si.  Querendo saber como era ser Amadeu, poeta que tinha a “alma feita de palavras”, Gregorius percebe que o médico era tudo que ele não era. Ou não tinha se permitido ser. Mas é possível saber como é ser o outro sem sê-lo? Como seriam as coisas se tivessem tomados outro rumo? A vida é o que vivemos ou o que imaginamos viver? Somos os mesmos quando voltamos? Essas são apenas algumas questões provocadas pelo livro.

De leitura densa e reflexiva, abandonei-o inúmeras vezes ao longo de dois meses. Não sei se pelo momento de mutação que estou vivendo, mas a viagem por Lisboa e pelas vidas de Gregorius e Amadeu acabou sendo uma viagem para dentro de mim e precisei descer do trem. Porque sou balbúrdias, mas também sou silêncio.  E nessas subidas e descidas do trem, nessa viagem estranha, lembrei-me das sábias palavras de Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, “o mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam”.

Para terminar, deixo aqui o trecho que mais mexeu comigo, que, na verdade, nem foi o autor do livro que escreveu, mas o imperador romano Marco Aurélio.

“Força-te, força-te à vontade e violenta-te, alma minha; mais tarde, porém, já não terás tempo para te assumires e respeitares. Porque de uma vida apenas, uma única, dispõe o homem. E se para ti esta já quase se esgotou, nela não soubeste ter por ti respeito, tendo agido como se a tua felicidade fosse a dos outros... Aqueles porém que não atendem com atenção os impulsos da própria alma são forçosamente infelizes.”

Ficha Técnica:
Trem noturno para Lisboa
Autor: Pascal Mercier
Editora Record
Ano: 2010

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Olhai os lírios dos campos

E os rabiscos iniciais são sobre “Olhai os lírios dos campos”, de Érico Veríssimo (Ed. Companhia das Letras),  o primeiro livro de 2012. 
  
Comprei-o em 2011, seguindo a indicação da mãe de uma amiga, que disse que era o livro de sua vida. A sugestão ficou gravada em mim, pois ela tem UM livro favorito, o que, para mim - que tenho uma lista em constante atualização - é impossível.
Lançado em 1938, o livro marca o reconhecimento de Érico Veríssimo no país inteiro e leva-o a afirmar que só depois dele é que pode viver de literatura. E esse sucesso é justificável. O livro é suave, esperançoso e deliciosamente simples. 

Através da história do médico Eugênio Fontes, o autor fala sobre amor, os dramas familiares e individuais em meio a uma sociedade em transformação, provocada pelo desenvolvimento das cidades, a afirmação da classe média e um cenário político repressivo.

O sentimento de inferioridade, a obsessão por ascender socialmente e o temor marcam a trajetória de Eugênio. Ao saber que o grande amor de sua vida (Olívia) está no hospital morrendo, ele relembra tudo que viveu e os sacrifícios que cometeu em nome de sua ambição - o menino pobre e infeliz, que estudou em uma boa escola graças aos esforços incansáveis dos pais; o adolescente solitário, marcado pelo suicídio de um professor; o universitário covarde e encabulado com a humildade da família; o jovem médico fraco que se apaixona por Olívia, ex-colega da faculdade, com quem mantém um relacionamento sem compromisso; e o homem que se casa com uma mulher rica (Eunice) por interesse.

Nessa primeira parte, o livro é intenso, com histórias bem desenvolvidas e envolventes - como o sumiço do irmão, a rejeição ao pai, a descoberta que tem uma filha com Olívia. 
Movido pelo remorso, ele percebe que por esse caminho torto foram ficando os que lhe amaram sem pedir compensações, os que não exigiram nada e lhe deram tudo, principalmente Olívia, uma mulher que desnudou o mundo e o apresentou para Eugênio e ele, cego pelo seu egoísmo, deixou-a partir. E a beleza do livro está nessa avaliação de vida e no romantismo do seu despertar, características comuns nos romances da década de 30.

Essas reflexões sobre os autênticos valores da vida dão título a livro, que é inspirado em um versículo bíblico (“Considerai os lírios do campo. Eles não fiam nem tecem e, no entanto, nem Salomão em toda a sua glória se cobriu como um deles”).

Na segunda parte, Eugênio decide mudar, deixando de lado a vida elitista para viver com a filha numa pensão, assumindo o papel social de médico e entregando-se às reflexões filosóficas sobre a vida e o existir. Confesso que, nesse ponto, meu interesse reduziu devido às percepções repetitivas do personagem, mas não diminuiu o deleite que o livro proporcionou.

A transformação vivida pelo personagem e os ensinamentos que a vida lhe propiciou podem até soar para alguns ridiculamente sentimental. No entanto, Érico Veríssimo consegue transcrevê-los com singeleza e doçura, deixando para o leitor a sensação de que, por mais complexo que seja a natureza humana, o fazer o bem e o certo é mais recompensador.

Deixo aqui o trecho mais emocionante do livro:


“Eugênio viu um vulto familiar surgir a uma esquina e sentiu um desfalecimento. Reconheceria aquela figura de longe, no meio de mil… Um homem magro e encurvado, malvestido, com um pacote no braço, o pai, o pobre Ângelo. Lá vinha ele subindo a rua. Eugênio sentiu no corpo um formigamento quente de mal-estar. Desejou – com que ardor, com que desespero! – que o velho atravessasse a rua, mudasse de rumo. Seria embaraçoso, constrangedor se Ângelo o visse, parasse e lhe dirigisse a palavra. Alcibíades e Castanho ficariam sabendo que ele era filho dum pobre alfaiate que saía pela rua a entregar pessoalmente as roupas dos fregueses… Haviam de desprezá-lo mais por isso. Eugênio já antecipava o amargor da nova humilhação. Olhou para os lados, pensando numa fuga. Olhou para os lados, pensando numa fuga. Inventaria um pretexto, pediria desculpas, embarafustaria pela primeira porta de loja que encontrasse. Ouvia a voz baixa de Castanho… o “conceito hegeliano…”. Podia entrar naquela casa de brinquedos e ficar ali escondido, esperando que Ângelo passasse… Hesitou ainda um instante e quando quis tomar uma resolução, era tarde demais. Ângelo já os defrontava. Viu o filho, olhou dele para os outros e o seu rosto se abriu num sorriso largo de surpreendida felicidade. Afastou-se servil para a beira da calçada, tirou o chapéu.
– Boa tarde, Genoca! – exclamou. O orgulho iluminava-lhe o rosto.
Muito vermelho e perturbado Eugênio olhava para a frente em silêncio, como se não o tivesse visto nem ouvido. Os outros também continuavam a caminhar, sem terem dado pelo gesto do homem.”

Bem... Até mais. 


Ficha Técnica
Olhai os lírios dos campos
Autor: Érico Veríssimo
Editora Companhia das Letras
Ano: 2005 – 4ª edição (1ª edição em 1938)

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Orelha

Livros são minha base, extensão do meu ser. Toda a minha vida esta interligada a um livro – quando li, onde e por que comprei, as palavras que conheci e as que acrescentei ao meu vocabulário, quem me deu, o que ele representou para mim e o que consegui extrair e transportar…

Livros são meus companheiros de estrada, de ônibus, de viagens, de vida. Companheiros diários, que, muitas vezes, me preenchem quando ninguém mais o consegue.

O ler vai muito além de pegar um livro, sentar e ler. Para mim, é arte. Começa no ato da compra. O olhar, sentir a textura da capa e das folhas, ler a orelha e uma página aleatória, ir para a fila, pedir um marcador e voltar para casa transbordando de felicidade. Depois, sentar em um lugar fresco, sem barulho, com o lápis em mãos e, entorpecida pelo o cheiro das páginas impressas, seguir… Até onde a fome, a vontade de ir ao banheiro ou o telefone deixarem. Às vezes, devoro-o. Outras, demoro meses e intercalo com outros livros. E não gosto de começar e deixar pela metade, mesmo que o livro seja entediante. Poucos foram os que não terminei.

Livros me despertaram paixões e manias, como a de colecionar palavras - novas, belas, interessantes, sinônimos, poucos usuais ou de sonoridade agradável. Ao deparar-me com uma, sublinho-a e anoto. Vez ou outra, volto às minhas anotações para visitá-las. A nova mania é colecionar lápis e, a partir de agora, escrever sobre livros.

Estava listando todos os livros que li desde 2005 e minha irmã sugeriu que eu criasse um espaço para comentá-los. E cá estou eu, tentando, despretensiosamente, juntar três coisas que amo: livros, escrever e palavras – sem formatação definida e sem saber o que me aguarda. Só sei que quero ler todos os livros da minha interminável lista. Ler até meus últimos dias de vida.