Para mim, livro bom é aquele que me faz vaguear,
sem rumo certo, ao acaso, sem fins específicos, percorrendo ideias e emoções,
permitindo-me ser transportada para outros lugares, vivendo novas descobertas e
redescobrindo a beleza do existir.
Trem
noturno para Lisboa, de Pascal Mercier (pseudônimo de Peter Bieri,
professor de filosofia de Berlim), conseguiu levar-me para caminhos inquietos,
cercados por experiências de amizade, amor, solidão, morte, lealdade e
mudanças. No vagão, reavaliei meus conceitos sobre o ser e, principalmente, o
estar.
É muito confortável passar a vida como se
estivesse num quadro pintado a óleo, constante, perene, repousando
tranquilamente numa imagem construída por si e pelos outros. Sem oferecer
imprevistos e contrariedades. E assim era a vida de Raimund Gregorius, um homem
erudito, professor de latim e grego na cidade de Berna (Suíça), preso as suas
próprias limitações. Era até cruzar com uma mulher com a intenção de pular da
ponte que ele percorria diariamente e se encantar com sua voz macia com sotaque
português, língua que até então ele desconhecia (“uma melodia que ele
simplesmente adoraria ter escutado durante todo o resto da vida”). Horas
depois, no meio de uma aula, Gregorius vai embora e, aos 57 anos, tem a
sensação de finalmente estar prestes a tomar as rédeas de sua própria vida.
Perambulando pela cidade, ele entra numa livraria
e se depara com um livro sobre o escritor português Amadeu Inácio de Almeida
Prado, o ourives da palavra. O dono da livraria se oferece para ler um trecho e
as palavras, de sonoridade aveludada, provocam em Gregorius um efeito
atordoante, pois parecia que tinham sido escritas só para ele, principalmente
naquela manhã em que tudo havia mudado. Ele compra o livro, faz as malas e pega
o trem noturno para Lisboa, deixando para trás sua vida organizada e uma parte
dele (“Sentiu-se à deriva num bloco de gelo que se desprendera da terra firme
por um terremoto e vagasse no mar aberto e gelado”). E foi encontrar um mundo
do qual ele nada sabia até então.
Em Lisboa, Gregorius começa uma jornada
investigativa para tentar compreender a vida do misterioso escritor português
Amadeu de Prado, que morrerá 30 anos antes, buscando pessoas que conviveram com
ele, lugares e fragmentos.
Homem de temperamento excessivo, Amadeu tornou-se
médico para realizar o desejo do pai doente, que se suicidou por não aguentar
as dores na coluna. Dono de um carisma hipnotizante, era querido e respeitado
por todos até salvar a vida de um odiado oficial da polícia secreta da ditadura
de Salazar. Depois disso, as pessoas passaram a evitá-lo e isso partiu seu
coração. Para se redimir, passou a trabalhar clandestinamente para a resistência
antifascista.
Paralelamente, Amadeu era também um escritor de
suas próprias angústias, um “ourives das palavras cuja paixão mais profunda
consistira em arranca as experiências silenciosas da vida humana de sua mudez”.
A peregrinação de Gregorius mostra o quão penosa é
a busca pela compreensão do outro e de si. Querendo saber como era ser Amadeu, poeta que
tinha a “alma feita de palavras”, Gregorius percebe que o médico era tudo que
ele não era. Ou não tinha se permitido ser. Mas é possível saber como é ser o
outro sem sê-lo? Como seriam as coisas se tivessem tomados outro rumo? A vida é
o que vivemos ou o que imaginamos viver? Somos os mesmos quando voltamos? Essas
são apenas algumas questões provocadas pelo livro.
De leitura densa e reflexiva, abandonei-o inúmeras
vezes ao longo de dois meses. Não sei se pelo momento de mutação que estou
vivendo, mas a viagem por Lisboa e pelas vidas de Gregorius e Amadeu acabou
sendo uma viagem para dentro de mim e precisei descer do trem. Porque sou balbúrdias, mas também sou silêncio. E nessas subidas e descidas do trem, nessa viagem
estranha, lembrei-me das sábias palavras de Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas,
“o mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre
iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou
desafinam”.
Para terminar, deixo aqui o trecho que mais mexeu
comigo, que, na verdade, nem foi o autor do livro que escreveu, mas o imperador
romano Marco Aurélio.
“Força-te, força-te à vontade e violenta-te, alma
minha; mais tarde, porém, já não terás tempo para te assumires e respeitares.
Porque de uma vida apenas, uma única, dispõe o homem. E se para ti esta já
quase se esgotou, nela não soubeste ter por ti respeito, tendo agido como se a
tua felicidade fosse a dos outros... Aqueles porém que não atendem com atenção
os impulsos da própria alma são forçosamente infelizes.”
Ficha Técnica:
Trem noturno para Lisboa
Autor: Pascal Mercier
Editora Record
Ano: 2010